Não quero mais a neutralidade. Quero assumir minha realidade e me expor e vencer o medo de errar que bloqueia o movimento e a criação. Quero pecar por excesso.

Esse blog é isso. Um exercício de Libertação.








sábado, 3 de abril de 2010

A verdadeira sexta-feira santa

Ontem foi sexta-feira Santa. E aqui também é feriado. E aqui também não se come carne. E a cidade estava deserta e silenciosa (Freising é tão católica que deve até ser proibido sair na rua.. rsrs). E o Tato fez uma peixada deliciosa.
Mas faltou algo...
É que sexta-feira santa sem a procissão de velas de Matão não é uma legítima sexta-feira santa.
Quando eu era criança, nós íamos sempre para lá e a sexta-feira santa era um super de um evento. De tarde a Zezé e a mami já encapavam as velas com papel laminado para a criançada não queimar a mão. E de noitinha nós íamos para a esquina da avenida da antiga casa da minha vó para esperar a procissão.
Que delícia era esse momento. Que ansiedade gostosa de criança! À medida que despontava lá do bairro alto aquele mundo de luzinhas, me invadia uma animação tão grande que chegava perto do nervoso. E eu já nem cabia mais em mim.
Aos poucos a reza do povo alcançava nossos ouvidos e podia-se até distinguir o padre que puxava o terço pelo microfone.
Quando a multidão estava perto de nos engolir, meu pai mandava que ficássemos colados nas paredes da relojoaria para não sermos levados pela onda humana. Era como se prendêssemos a respiração e mergulhássemos num mar de velas, calor e cheiros ao som de passos e ave-marias.
E então chegava meu acontecimento favorito. Toda de negro, com o rosto coberto, caminhava à frente do cortejo a viúva Verônica. Cantava chorosamente, nos intervalos de reza, a morte de Jesus e carregava solenemente o Santo Sudário, que ia desenrolando bem devagar até chegar ao ponto final da procissão.
Essa personagem sombria era de uma carga-dramática tão intensa que eu me estralava de medo e admiração. Na verdade, hoje entendo que já desde pequena, era o teatro que despontava em mim. O encantamento por aquela personagem bíblica nada mais era do que uma vontade louca de eu mesma viver aquela dama de negro, no auge de seu sofrimento, por algumas horas. Para aumentar ainda a aura de mistério que a envolvia, eu me lembrava de que alguém havia me contado que essa viúva tinha sido por muitos anos a tia Ada (uma tia velha, parente de meu avô, bem biruta da cabeça). Uau.
Passada a comissão de frente (desculpe se isto é termo de escola de samba) nós acendíamos as nossas velinhas e, acompanhados pelo meu pai, andávamos 1 quarteirão em cortejo até a igreja, que ficava na praça na rua de cima da casa da minha vó.
A igreja Matriz era o ponto final e também de encontro de duas outras procissões vindas de outros bairros. O povo se espalhava por tudo: pessoas dependuradas no coreto, de pé em cima dos bancos, montadas nas árvores. Era tanta gente que eu poderia jurar que o mundo inteiro estava presente. Na ponta dos pés dos meus 7, 8, 9 anos, com certa dificuldade para enxergar, assistia o fim da cena do desenrolar do Santo Sudário. Como é que podia o rosto de Jesus ter ficado gravado no pano com que Verônica enxugou seu rosto? Não entendia, mas me impressionava. (Não que hoje eu entenda, mas não me pergunto mais, simplesmente aceito).
Iniciava-se então a missa, apagavam-se as velas e eu começa a atormentar meu pai para irmos embora. Comprávamos uma pipoca de pipoqueiro e eu descia feliz e satisfeita com meus primos de volta para casa da vó. Provavelmente deveria ser hora da janta e nós tomaríamos uma sopa Taiadelli!!!
Só pra finalizar, registro ainda uma lembrancinha a fim de guardá-la mais seguramente... Sim meu amigo, em um dia muito distante nossa Memória há de falhar!
Lembro de uma vez que ganhei um terço fosforescente e o carreguei, junto com a velinha, ao longo do meu 1 quarteirão sagrado. Nunca me senti tão religiosa e iluminada como naquele dia.

Um comentário:

  1. Muito lindo e real. Voltei no tempo. Amei... Ontem, assisti a procissão da sacada do meu apartamento, pois chovia muito. Lembrei-me também daquela esquina e senti saudades de vocês crianças e pensei: certamente a Jaque vai se lembrar da procissão. Ia te escrever. No duro mesmo. Que coincidência. Jaque, o pessoal passou na chuva com as velinhas. Acredita? Enroladas e acesas. Chorei de emoção. Bjs Zezé

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