Não quero mais a neutralidade. Quero assumir minha realidade e me expor e vencer o medo de errar que bloqueia o movimento e a criação. Quero pecar por excesso.

Esse blog é isso. Um exercício de Libertação.








terça-feira, 27 de abril de 2010

Trecho de Lições de Abismo

Segunda parte- cap I
Beeeeem picotada ... que Gustavo Corção não se ofenda!

"Despedi-me hoje das rosas desfolhadas. Da mocidade estuante de três dias atrás e da maturidade esplêndida de ontem, eis o que ficou: quatro velhas, quatro loucas solteironas que ainda se pintam e se ataviam com pétalas impróprias para a idade.
Já disse eu que minhas rosas têm nomes? Dou-lhes nomes pessoais, de mulher, para libertá-las do indefinido da raça e da espécie. Fazem-me assim melhor companhia. A personalidade delas reforça a minha personalidade; e o ritmo delas alarga o meu ritmo.
Estas defuntas de hoje tiveram vida gloriosa. Chamavam-se ...
(...)
Mudei hoje a água e as rosas. Trago três botões escolhidos.
(...)
E agora começa a gesticulação lentíssima das flores. Acordam, espreguiçam-se, dançam num ritmo fora de meu ritmo, escondendo na lentidão, que promete séculos de vida, a doçura infinita de seus gestos perfeitos.
(...)
Imagina, ó minh'alma, um rosto amado que levasse doze horas a desatar um único sorriso, para depois morrer. E o que me confunde, nessa dança das rosas, e nesse ritmo fora de nosso ritmo - como se o comandasse lá do alto um coração gigante, metrônomo das estrelas e das rosas - o que me espanta, deixando-me perdido em cogitações sem fio, é a obscuridade, a autonomia, a gratuidade desse espetáculo sem espectador.
Amanhã quando eu acordar, minhas rosas-meninas serão moças. E parecer-me-ão imóveis. Se o vento as agita de leve, se elas então oscilam e se inclinam, mais escondida ainda estará aos meus olhos a sua mobilidade própria. Porque os meus olhos, escravos de um coração frenético, que há de pulsar ainda umas cinqüenta mil vezes, não conseguem adaptar-se ao ritmo largo, que pulsa uma só vez e morre. Vejo, quando muito, as etapas das rosas. Hoje botões. Amanhã entreabertas. Depois, gloriosas. E finalmente vencidas. Vejo-lhes as transições como o parente afastado que de ano em ano observa que a menina cresceu, botou corpo e ficou mulher.
Vejo-lhes quadros; digamos que veja uma dúzia, duas dúzias, digamos que de cinco em cinco minutos eu venha examinar o trabalho das pétalas. Mesmo assim, escapa-me a frase inteira, a continuidade, o sentido do movimento. Uma dança não é uma sucessão de estátuas. Quem tirasse duzentas fotografias de um bailado de Nijinski, ainda não saberia como dança a alma de um russo. Quem entrasse na sala de concertos de tempos em tempos, a se certificar do trecho por onde andam os músicos, nunca poderia conhecer as dimensões da alma de Mozart.
(...)
Espetáculos sem espectador. Imagina, ó minh'alma, esse imenso teatro sem platéia, esse palco escuro, essa infinita beleza escondida. Imagina os lugares ermos, as encostas dos montes pelas madrugadas, o concerto dos pássaros que as flores não ouvem, e o concerto das flores que os pássaros não vêem; imagina a joalheria de orvalho que a noite enfia em colares sem conta, e que o sol desfaz, sem que ninguém pelos vale diga à noite, ao pássaro, à flor: que beleza! obrigado!
(...)
Espetáculos sem espectador. As vidas... Imagina agora, ó alma de minh'alma, as vidas que ninguém vê, senão por etapas, senão por quadros imóveis, e que se entreabrem, que desabrocham, que pendem vencidas, sem que ninguém perceba a sua continuidade, o seu ritmo, o seu movimento todo, o seu segredo completo - sim, o seu segredo... "

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